domingo, 6 de dezembro de 2020

TRÍPTICO DE GATAS, DE VALERIA GUZMÁN

I

Uma gata perpétua
alçada na beira do desconcerto
São horas 
em que fita atentamente
com a fondura azul dos seus olhos.

Apenas o vidro a separa
de um par de pequenos pássaros
que pulam na árvore defronte.

Ela não sabe
mas o seu trinar é harmónico
e apenas observa
a dança do espaço mudo
como num filme de Chaplin.

II

Uma mulher 
toma chá de cerejas
e olha para uma gata
ergueita na brancura.

Na mesa,
um livro de poemas em russo.
Ela intui
que a gata surda
e a sua língua muda
são complementares:
como há de ser ler e perceber
grafias e gramáticas de um idioma
e imaginar o som das palavras
sem as saber pronunciar?

III

Do mesmo filme de Chaplin
em revoluções e ritmos:

A gata é siberiana e surda.
A mulher é russa e muda.
A preto e branco
entrou na cena
o silêncio.

© Texto: Valeria Guzmán
© Tradução: Xavier Frias-Conde

DE DIAS COMO NOITES, DE MARIANO GAMO


I

Fundo-me contigo quando alguma tua parte faz um movimento de que em ti surjo e expressas. Porque contigo a luz é maior. Porque és uma lâmpada que se acende com as mãos e gosta de saliva, capaz de se mexer e trazer para este tempo a sabedoria das mulheres das antigas sociedades.

Quero fazer contigo todos esses restos que ficam quando o metal confia no maçarico. Salpicar com as tuas asas de prata que vestem o mais prezado dos mates.

Cada bocadinho que aparece no teu corpo é a pincelada salientada que leva todos os pigmentos que absorvem o olhar e, de certo, a luz.

Desfrutemos de vencer o tempos sem o salvarmos, até ele vencer.

Celebremos o canto da desfeita. Sejamos o casal de golfinhos que dever nas crateras das melhores festas.

Com o teu sabor na boca, a casa cheira doutra maneira e ver-te como te esticas é o prazer interior do raio que nas casas para partilhar tardes de sonho.

II

Pintam-se alegrias com a boca das andorinhas que ousam voar baixo, sem por isso chover. Alegrias de manhã pelo teu ar respirado pelos ouvidos e do prurido que agradece a lama que apaga da tua pele o que tem a mais, exalam o brilho do sussurro que enleia palavras sem ser fio.

Fazem caminho para a dita a meio da tarde, sem medida concreta nem superável, sorriso travesso que por ti aguarda espalhado, sem enquadramento. Vem ao céu da tua língua, engana-se a ciência e pede para me excavares.

III

Pôr-se a falar de cavalos. Pôr-se a falar de cavalos e de éguas ao galope. Falar de cavalos e galopar. Mudar a montura por uma outra lubrificada e bem segurada, com um chicote numa axila cheirada previamente, e fazer uma boa galopada e escutar como se é que me pedes que termine a corrida sobre ti a me chamar a tua vida.

© Texto: Mariano Gamo
© Tradução: Xavier Frias-Conde

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

DE 'CORPO MANSO LOUCURA BRANDA' POR ELISABETH MORÃO

Judas: La letanía de un cuerno


Me contemplas
A través de las vísceras malvadas
De los celos y del odio
De tu boca se refleja
El ácido y corrosivo malestar
De quien tan solo posee
A su vil esclava y amante
Me contemplas
Y es como si nunca hubieras visto
La furiosa libertad
La indomable bondad
De la que ya no te ama
Se acabó todo
Se murió
Llegó a su apogeo
Este miserable sentimiento
Que te empeñas en llamar amor
¡Amor! Francamente
Lo tuyo es demencia
Cómo pudiste confundir
Esta obsesión con un esbozo de emoción
¿Emoción?
Qué gran palabrón
En la mente de quien nada siente
Sino este odio contundente
Como una navaja cortante.
Te creías que no viviría sin ti
Que todo mi ser se derruía
Innoble, vil criatura
De cada golpe proferido
Guardo un sabor indecible
De todas las cicatrices
Que exhibo
Como trofeos de meretrices
Te creías que no viviría
Que nunca más la vida me sonreiría
Mi amor, si te amé
Fue por equivocación
Regresa a tu vida magnánima
Yo soy la heroína
Aunque condenada
En el palco de mi vida
Solo se quedan los malamados.


La apnea


Lo que me agobia
No es sino la propia vida
La vida a la que aspiro
La vida que no vibra
La vida que no vivo
La vida que me preña
De todos los temores
Latentes sinsabores
Constantes y duros dolores
Por ser intensa y magra.

Lo que me agobia
Ni lo sé, ni lo puedo saber
No es miedo a la muerte
Angustia o amarre
Aquel que puse
Alrededor del poema
Que intento degollar
Inmunda estratagema
De la cobarde poeta
De la rendida esteta
Puta de sus valores
Sierva de sus amores
Lujuria siempre triste.

Soy la meretriz
Yo que un día canté
Al son de los trovadores
Oasis de mis cielos
Soy la meretriz
Asumida y revuelta
Que espera que perdones
Su ahogo de la vida.


Del abismo donde te espero


Saber que la oscuridad donde siempre camino
Ilumina la tuya, con un toque de ternura
Donde se esperan tinieblas
Donde nadie busca
Donde reside el amor
Verdadero y puro
Pues es en las sombras y el dolor
De toda amargura
Donde se esconden los seres
Intensos e impuros
Que aman con placer
Que sueñan en blandura
Y te alzan en brazos
Rehenes de su locura.

© Del texto: Elisabeth Morão
© De la traducción: Xavier Frías-Conde

quinta-feira, 26 de março de 2020

TRÊS AVISOS DE GATO


(1)

Um som distante
Deixa a luz espalhar-se
como água no chão.
Ronrom sussurrante
que inspira e expira tempo.

Trigo fecha os olhos e diz-me
que sonhou borboletas
que sonhou colibris a entrar pela janela
e querendo escapar pela claraboia
que sonhou minhocas
que sonhou um enorme jardim
que sonhou carícias de madeira e tecido
que sonhou outros gatos, noutros tempos,
e não sabe se foram as suas sete vidas
que sonhou transeuntes que lhe falam pela janela
que sonhou que o seu rabo o embalava
que sonhou que mascava bolas de plástico,
brinquedos, pedaços de vida carregados de trabalho
que sonhou que dormia comigo
para acordar de novo
para me contar os seus sonhos


(2)

Gostas do cheiro dos meus passos
Quando a porta abre o barulho dos carros,
vens para concentrar o calor da tua cabeça
nos meus pés descalços
mordes nas minhas desventuras
limpas com a tua língua
o percurso que não deu frutos
pedaço de língua e cabelo


(3)

Debaixo da cama
entre o espaço das meias rasgadas
e as borlas do tapete de lã
escondes
bocadinhos de amaranto
folhas de hortelã-pimenta
uma ponta desgastada da minha blusa
e os teus passos agachados
para me acordares de manhã

© Texto: Luz Lepe Lira
© Tradução: Xavier Frias-Conde

sábado, 21 de março de 2020

NO MEIO DE UM RIO E OUTROS POEMAS

NO MEIO DE UM RIO


Sentada no centro de um rio que escreve beleza,
entre os discos de meu pai procuro,
nas beiras dos seus livros os poemas da mocidade.

Mãe, coserei um vestido com as tuas tranças virgens:
mãe, deixa que luza nos meus calcanhares o teu sangue jovem.

A moda ri com melodias azedas. Sangra-nos a moda, tinge-nos de vermelho
as unhas, são todos os sapatos avermelhados.

Afundirei os tacos no fundo da agulha vermelha,
escreverei mensagens na beira da Constituição.

Com os meus cabelos de cobre molhado rirão os barcos,
eu própria rirei ao desfrutar dos poemas, ao cerzir a música
que alguém dantes bordara.


QUE NÃO ARREFEÇA O CAFÉ


Tens um medo ancestral a te queimares, medo
a seres mordida por algum cão na perna
o algum líquido preto na pele.

—Un caffè macchiato per la ragazza.

Ruge um cão pequeno e muito enrugado
escondido sob a pele que cobrira um cavalo.
E por enquanto, atrás, alén da barra do bar
agita, interpreta o italiano maturo
os entardeceres siena da áfrica negra
—coquetel de vida miserável e solidão—.

—Tens medo de seres mordido pela vida?
Morde a vida. Sabe que não dói sempre.
Não sangra sempre. Por vezes produz prazer.


AO NOSSO PASSO


Parte um Bart sem mim en Montgomery Street.
Já é noite
e uma rapariga vestida de preto deteve o passo.
Alguém soa o piano que deixaram cair
mesmo no meio da rua.

Soa a quatro mãos o Dies Irae do Réquiem
que um desconhecido sob uma capa escura
encarregara ao Mozart.
A derradeira vez que bateu na porta,
o homem de preto não era um homem.

Quem sabe que partes da sequência
não foram apagadas pelos seus discípulos.

O perfume da incerteza
desenha as notas da minha elegia.
Enfio-a como as bágoas sólidas
ao meu colar de agoiros.

E reescrevo-a
na saia
de pé
no derradeiro vagão do serão.

© Texto: Elia Saneleuterio Temporal
© Tradução: Xavier Frias-Conde

sexta-feira, 20 de março de 2020

À SOMBRA DO CAYAMBE



GAIOLA

que necidade a dos meus ossos,
querer construir uma gaiola
para o calor dos teus dedos,

que necidade a tua

de coser as minhas costelas
com os teus dedos,

dói muito,
senti-los desesperados
com o desejo como médula,

esta magreza tem nome
e tem fame (...)



2015 - "poemas después de Laclau"

CELHAS POVOADAS


... enquanto dormias hoje de manhã
precisei contar algo de ti
e descrever algo tão de teu e tão natural,
mas precisava contar algo que me supusesse um desafio,
as tuas celhas!
sim, as tuas celhas pretas, povoadas, desarrumadas
e visei contar cada febrinha das tuas celhas
e dei ouvidos ao mito do conjunto infinito
e com paciência para -turno médico-
comecei pela celha direita,
já contara onze febrinhas,
cheguei a dezaoito,
cheguei a vinte
e quando estava para chegar a vinte e seis
o miado agudo do gato (sinónimo de fame)
despertou-te...
e descobriste-me tão pertinho de ti,
beijaste-me na vint...
e nessa manhã foi impossível voltar
a contá-las...



2016 -  "poemas después de Laclau" 2015




AOS 33


Sempre foi assim,
à sombra das árvores
eram o seu abeiro,
o seu lar,
onde caminhar descalça
era permitido,
onde o sol
era evaporador de bágoas,
onde o vento
era parceiro de jogos,
onde a água
era espelho,
onde perguntar
era essencial,
onde o silêncio
era a resposta.

E é tudo quanto possui (...)

© Texto: Nataly Lalangui
© Tradução para português da Galiza: Xavier Frias-Conde