sábado, 24 de novembro de 2018

RAPARIGA DUM BANHO PÚBLICO E OUTROS POEMAS DE JUAN FELIPE ROBLEDO


RAPARIGA DUM BANHO PÚBLICO


Decerto não verei com estes olhos mortais
a história desta rapariga que imagino clara e afetuosa.
Decerto sorrirá descarada
e tocará as costas daqueles que aguarda em frente da estação.
Teria desejado contemplar
o seu lento deter-se nas ruelas
e o modo em que segura a lapela dum marinho.
Nada disto vou conhecer, não poderei desfrutar de um estufado
de peixe ao pé dela a contemplar o undoso rio.

No entanto, parece que a conheço desde sempre
quando imagino hoje à tarde o retorno a casa
(detendo-me por doces, pão e mel)
para tentar convocar o seu corpo, a sua presença
de dançarina a destempo
de amiga entre os abrolhos.


APRENDIZ DE FREIRE

Ouve uma música que estaria de preferência no fundo de uma lagoa
e pregunta-se porquê é preciso nascer para o nada
e se a forma das nuvens serão diferentes ao olhá-las de Kuala Lumpur.
Quer dizer que está sozinho a meio da noite e te abençoa

O teu coração é um ventilador que faz voar as tiras de papel da sua ilusão
e pensa então em Eurídice e no lerdo Orfeu a tocar dulzaina ou contrabaixo.

Moras nesta noite, forno dos meus desejos,
pois não tiveste medo,
e não me abandonaste quando os outros o fizeram

Beija-te na testa e, como cuidador da meia-noite,
faz com que a lanterna percorra o rosto atónito das cousas
para descobrir nelas as pegadas da tua presença,
caro amigo que te entregas ao mar.


A ÁRVORE DE CAUCHO

As formigas que conhecem bem a sombra
não têm motivos para se envergonharem,
não há lugar que não conheçam
nem alegria que não as encha nas manhãs frescas da costa.

As mangas que repousam nos vieiros percorridos
pela sua impudícia
são hoje ruínas de castelos, afastados bastiões para esquecer
e não se lançar a conquistar.
Os cruzados jamais viriam a esta terra, os corcéis
não assobiaram nela sob longas melodias.
São as suas rotas povoados concertos que cantam a espessura,
tempo silente que não diz vaguidades ou intensifica
os acentos que moram sobre as suas cabeças

Deuses que atravessaram o oceano moram nesta terra
desde há vários séculos
e os que habitam baixo a árvore não ficam a saber
ou se um dia souberam não se importam.

Não há baixo a árvore do caucho preces, não há consolação
tudo é vida de esplendor para o esquecimento.

E as folhas mexem-se, o tempo é eterno nas beiras,
o cães perseguem-se desde sempre entre a areia,
festejam os ou louros e os papagaios no céu magro
que abraça a árvore,
o dia decorre com fogos remotos e a pedra canta para si.

© Texto: Juan Felipe Robledo
© Tradução para Galego Internacional: Xavier Frias-Conde

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

SER, DE GLORIA YOUNG



I

Estas dobras da vida
penduradas dos ossos
esta cintura ainda visível
onde te agarras
por vezes
estas coxas anchas rejas
por que trotam os teus espaços
esta anca ocada
estojo para as tuas mãos
estas pernas que te asfixiam
com um nó de veludo
da escura gorja
até o lume
-tenro 
mastro
que transtorna os sentidos-
estes pés que 'te caminham
estas mãos que 'te furgam
esta mulher que te ama,
aqui
no quarto imperfeito.

II

A lua é o dia incendiado sob a árvore.

A água queima a minha gorja
só uma palavra fresca
alaga o meu corpo e a minha alma.

É a palavra que juntou os nossos passos
em qualquer recanto
e tropeçou entre as sombras
e paralelepípedos
e topou o caminho do mar
perdido.

É a palavra amarrada
à morte dos relógios
e à chuva do domingo azul
com a sua escuma
que lava o meu ventre de pó.

É a palavra que cruzou a rua e entrou no hotel
para o quarto
e se deitou na cama.

III

Sou o recinto
de todas as palavras penduradas no vento
da luz que atravessa a minha curva cordilheira
da cantiga do sono
do mar com as suas escumas
da alma desbocada ao fio de uma estrela

Sou a voz
que não se esconde
que explora os seus tecidos
que uiva no mistério de todos os silêncios
que murmura à vida
que espreita na vigília
que bota o riso a voar vencendo a saudade.

Sou a água
da chuva
do mar
da trovoada
e procuro tesoros
e lavo
as lembranças

Sou a mulher
deste século
a escalar esperanças
a cavalgar corcéis
de amor e tenrura
a abrir os meus poros
ao cheiro das frutas
a ceivar o cabelo
a sulcar a doçura
aqui
na penumbra
do
pôr-de-sol

© Texto: Gloria Young
© Tradução para Galego Internacional: Xavier Frias-Conde

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

CANÇÃO 20, PABLO NERUDA


Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Escrever, por exemplo: "A noite está estrelada
e tremelicam azuis os astros ao longe".
O vento da noite vira no céu e canta.
Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Eu amei-a, por vezes ela também me amou.
Nas noites como esta tive-a nos meus braços.
Beijei-a tantas vezes sob o céu infindo.
Ela amou-me, por vezes eu também a amava.
Como não ter amado os seus olhos grandes fixos.
Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Pensar que não a tenho. Sentir que a perdi.
Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela.
E o verso cai na alma como no pasto a orvalhada.
O que importa que o meu amor não pudesse guardá-la.
A noite está estrelada e ela não está comigo.
Isso é tudo. Ao longe alguém canta. Ao longe.
Minha alma não se contenta com tê-la perdido.
Como para achegá-la o meu olhar procura-a.
O meu coração procura-a, mas ela não está comigo.
A mesma noite que branqueja as mesmas árvores.
Nós, os de então, já não somos os mesmos.
Já não a quero, é verdade, mas quanto a amei.
A minha voz procura o vento para tocar o seu ouvido.
A sua voz, o seu corpo nídio. Os seus olhos infindos.
É tão curto o amor e é tão longo o esquecimento.
Porque em noites como esta a tive entre os meus braços,
a minha alma não se contenta com a ter perdido.
Embora esta seja a derradeira dor que ela me causa
e estes sejam os derradeiros versos que eu lhe escrevo.

© Texto: Pablo Neruda
© Tradução: Xavier Frias Conde