domingo, 6 de dezembro de 2020

TRÍPTICO DE GATAS, DE VALERIA GUZMÁN

I

Uma gata perpétua
alçada na beira do desconcerto
São horas 
em que fita atentamente
com a fondura azul dos seus olhos.

Apenas o vidro a separa
de um par de pequenos pássaros
que pulam na árvore defronte.

Ela não sabe
mas o seu trinar é harmónico
e apenas observa
a dança do espaço mudo
como num filme de Chaplin.

II

Uma mulher 
toma chá de cerejas
e olha para uma gata
ergueita na brancura.

Na mesa,
um livro de poemas em russo.
Ela intui
que a gata surda
e a sua língua muda
são complementares:
como há de ser ler e perceber
grafias e gramáticas de um idioma
e imaginar o som das palavras
sem as saber pronunciar?

III

Do mesmo filme de Chaplin
em revoluções e ritmos:

A gata é siberiana e surda.
A mulher é russa e muda.
A preto e branco
entrou na cena
o silêncio.

© Texto: Valeria Guzmán
© Tradução: Xavier Frias-Conde

DE DIAS COMO NOITES, DE MARIANO GAMO


I

Fundo-me contigo quando alguma tua parte faz um movimento de que em ti surjo e expressas. Porque contigo a luz é maior. Porque és uma lâmpada que se acende com as mãos e gosta de saliva, capaz de se mexer e trazer para este tempo a sabedoria das mulheres das antigas sociedades.

Quero fazer contigo todos esses restos que ficam quando o metal confia no maçarico. Salpicar com as tuas asas de prata que vestem o mais prezado dos mates.

Cada bocadinho que aparece no teu corpo é a pincelada salientada que leva todos os pigmentos que absorvem o olhar e, de certo, a luz.

Desfrutemos de vencer o tempos sem o salvarmos, até ele vencer.

Celebremos o canto da desfeita. Sejamos o casal de golfinhos que dever nas crateras das melhores festas.

Com o teu sabor na boca, a casa cheira doutra maneira e ver-te como te esticas é o prazer interior do raio que nas casas para partilhar tardes de sonho.

II

Pintam-se alegrias com a boca das andorinhas que ousam voar baixo, sem por isso chover. Alegrias de manhã pelo teu ar respirado pelos ouvidos e do prurido que agradece a lama que apaga da tua pele o que tem a mais, exalam o brilho do sussurro que enleia palavras sem ser fio.

Fazem caminho para a dita a meio da tarde, sem medida concreta nem superável, sorriso travesso que por ti aguarda espalhado, sem enquadramento. Vem ao céu da tua língua, engana-se a ciência e pede para me excavares.

III

Pôr-se a falar de cavalos. Pôr-se a falar de cavalos e de éguas ao galope. Falar de cavalos e galopar. Mudar a montura por uma outra lubrificada e bem segurada, com um chicote numa axila cheirada previamente, e fazer uma boa galopada e escutar como se é que me pedes que termine a corrida sobre ti a me chamar a tua vida.

© Texto: Mariano Gamo
© Tradução: Xavier Frias-Conde

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

DE 'CORPO MANSO LOUCURA BRANDA' POR ELISABETH MORÃO

Judas: La letanía de un cuerno


Me contemplas
A través de las vísceras malvadas
De los celos y del odio
De tu boca se refleja
El ácido y corrosivo malestar
De quien tan solo posee
A su vil esclava y amante
Me contemplas
Y es como si nunca hubieras visto
La furiosa libertad
La indomable bondad
De la que ya no te ama
Se acabó todo
Se murió
Llegó a su apogeo
Este miserable sentimiento
Que te empeñas en llamar amor
¡Amor! Francamente
Lo tuyo es demencia
Cómo pudiste confundir
Esta obsesión con un esbozo de emoción
¿Emoción?
Qué gran palabrón
En la mente de quien nada siente
Sino este odio contundente
Como una navaja cortante.
Te creías que no viviría sin ti
Que todo mi ser se derruía
Innoble, vil criatura
De cada golpe proferido
Guardo un sabor indecible
De todas las cicatrices
Que exhibo
Como trofeos de meretrices
Te creías que no viviría
Que nunca más la vida me sonreiría
Mi amor, si te amé
Fue por equivocación
Regresa a tu vida magnánima
Yo soy la heroína
Aunque condenada
En el palco de mi vida
Solo se quedan los malamados.


La apnea


Lo que me agobia
No es sino la propia vida
La vida a la que aspiro
La vida que no vibra
La vida que no vivo
La vida que me preña
De todos los temores
Latentes sinsabores
Constantes y duros dolores
Por ser intensa y magra.

Lo que me agobia
Ni lo sé, ni lo puedo saber
No es miedo a la muerte
Angustia o amarre
Aquel que puse
Alrededor del poema
Que intento degollar
Inmunda estratagema
De la cobarde poeta
De la rendida esteta
Puta de sus valores
Sierva de sus amores
Lujuria siempre triste.

Soy la meretriz
Yo que un día canté
Al son de los trovadores
Oasis de mis cielos
Soy la meretriz
Asumida y revuelta
Que espera que perdones
Su ahogo de la vida.


Del abismo donde te espero


Saber que la oscuridad donde siempre camino
Ilumina la tuya, con un toque de ternura
Donde se esperan tinieblas
Donde nadie busca
Donde reside el amor
Verdadero y puro
Pues es en las sombras y el dolor
De toda amargura
Donde se esconden los seres
Intensos e impuros
Que aman con placer
Que sueñan en blandura
Y te alzan en brazos
Rehenes de su locura.

© Del texto: Elisabeth Morão
© De la traducción: Xavier Frías-Conde

quinta-feira, 26 de março de 2020

TRÊS AVISOS DE GATO


(1)

Um som distante
Deixa a luz espalhar-se
como água no chão.
Ronrom sussurrante
que inspira e expira tempo.

Trigo fecha os olhos e diz-me
que sonhou borboletas
que sonhou colibris a entrar pela janela
e querendo escapar pela claraboia
que sonhou minhocas
que sonhou um enorme jardim
que sonhou carícias de madeira e tecido
que sonhou outros gatos, noutros tempos,
e não sabe se foram as suas sete vidas
que sonhou transeuntes que lhe falam pela janela
que sonhou que o seu rabo o embalava
que sonhou que mascava bolas de plástico,
brinquedos, pedaços de vida carregados de trabalho
que sonhou que dormia comigo
para acordar de novo
para me contar os seus sonhos


(2)

Gostas do cheiro dos meus passos
Quando a porta abre o barulho dos carros,
vens para concentrar o calor da tua cabeça
nos meus pés descalços
mordes nas minhas desventuras
limpas com a tua língua
o percurso que não deu frutos
pedaço de língua e cabelo


(3)

Debaixo da cama
entre o espaço das meias rasgadas
e as borlas do tapete de lã
escondes
bocadinhos de amaranto
folhas de hortelã-pimenta
uma ponta desgastada da minha blusa
e os teus passos agachados
para me acordares de manhã

© Texto: Luz Lepe Lira
© Tradução: Xavier Frias-Conde

sábado, 21 de março de 2020

NO MEIO DE UM RIO E OUTROS POEMAS

NO MEIO DE UM RIO


Sentada no centro de um rio que escreve beleza,
entre os discos de meu pai procuro,
nas beiras dos seus livros os poemas da mocidade.

Mãe, coserei um vestido com as tuas tranças virgens:
mãe, deixa que luza nos meus calcanhares o teu sangue jovem.

A moda ri com melodias azedas. Sangra-nos a moda, tinge-nos de vermelho
as unhas, são todos os sapatos avermelhados.

Afundirei os tacos no fundo da agulha vermelha,
escreverei mensagens na beira da Constituição.

Com os meus cabelos de cobre molhado rirão os barcos,
eu própria rirei ao desfrutar dos poemas, ao cerzir a música
que alguém dantes bordara.


QUE NÃO ARREFEÇA O CAFÉ


Tens um medo ancestral a te queimares, medo
a seres mordida por algum cão na perna
o algum líquido preto na pele.

—Un caffè macchiato per la ragazza.

Ruge um cão pequeno e muito enrugado
escondido sob a pele que cobrira um cavalo.
E por enquanto, atrás, alén da barra do bar
agita, interpreta o italiano maturo
os entardeceres siena da áfrica negra
—coquetel de vida miserável e solidão—.

—Tens medo de seres mordido pela vida?
Morde a vida. Sabe que não dói sempre.
Não sangra sempre. Por vezes produz prazer.


AO NOSSO PASSO


Parte um Bart sem mim en Montgomery Street.
Já é noite
e uma rapariga vestida de preto deteve o passo.
Alguém soa o piano que deixaram cair
mesmo no meio da rua.

Soa a quatro mãos o Dies Irae do Réquiem
que um desconhecido sob uma capa escura
encarregara ao Mozart.
A derradeira vez que bateu na porta,
o homem de preto não era um homem.

Quem sabe que partes da sequência
não foram apagadas pelos seus discípulos.

O perfume da incerteza
desenha as notas da minha elegia.
Enfio-a como as bágoas sólidas
ao meu colar de agoiros.

E reescrevo-a
na saia
de pé
no derradeiro vagão do serão.

© Texto: Elia Saneleuterio Temporal
© Tradução: Xavier Frias-Conde

sexta-feira, 20 de março de 2020

À SOMBRA DO CAYAMBE



GAIOLA

que necidade a dos meus ossos,
querer construir uma gaiola
para o calor dos teus dedos,

que necidade a tua

de coser as minhas costelas
com os teus dedos,

dói muito,
senti-los desesperados
com o desejo como médula,

esta magreza tem nome
e tem fame (...)



2015 - "poemas después de Laclau"

CELHAS POVOADAS


... enquanto dormias hoje de manhã
precisei contar algo de ti
e descrever algo tão de teu e tão natural,
mas precisava contar algo que me supusesse um desafio,
as tuas celhas!
sim, as tuas celhas pretas, povoadas, desarrumadas
e visei contar cada febrinha das tuas celhas
e dei ouvidos ao mito do conjunto infinito
e com paciência para -turno médico-
comecei pela celha direita,
já contara onze febrinhas,
cheguei a dezaoito,
cheguei a vinte
e quando estava para chegar a vinte e seis
o miado agudo do gato (sinónimo de fame)
despertou-te...
e descobriste-me tão pertinho de ti,
beijaste-me na vint...
e nessa manhã foi impossível voltar
a contá-las...



2016 -  "poemas después de Laclau" 2015




AOS 33


Sempre foi assim,
à sombra das árvores
eram o seu abeiro,
o seu lar,
onde caminhar descalça
era permitido,
onde o sol
era evaporador de bágoas,
onde o vento
era parceiro de jogos,
onde a água
era espelho,
onde perguntar
era essencial,
onde o silêncio
era a resposta.

E é tudo quanto possui (...)

© Texto: Nataly Lalangui
© Tradução para português da Galiza: Xavier Frias-Conde

sábado, 24 de novembro de 2018

RAPARIGA DUM BANHO PÚBLICO E OUTROS POEMAS DE JUAN FELIPE ROBLEDO


RAPARIGA DUM BANHO PÚBLICO


Decerto não verei com estes olhos mortais
a história desta rapariga que imagino clara e afetuosa.
Decerto sorrirá descarada
e tocará as costas daqueles que aguarda em frente da estação.
Teria desejado contemplar
o seu lento deter-se nas ruelas
e o modo em que segura a lapela dum marinho.
Nada disto vou conhecer, não poderei desfrutar de um estufado
de peixe ao pé dela a contemplar o undoso rio.

No entanto, parece que a conheço desde sempre
quando imagino hoje à tarde o retorno a casa
(detendo-me por doces, pão e mel)
para tentar convocar o seu corpo, a sua presença
de dançarina a destempo
de amiga entre os abrolhos.


APRENDIZ DE FREIRE

Ouve uma música que estaria de preferência no fundo de uma lagoa
e pregunta-se porquê é preciso nascer para o nada
e se a forma das nuvens serão diferentes ao olhá-las de Kuala Lumpur.
Quer dizer que está sozinho a meio da noite e te abençoa

O teu coração é um ventilador que faz voar as tiras de papel da sua ilusão
e pensa então em Eurídice e no lerdo Orfeu a tocar dulzaina ou contrabaixo.

Moras nesta noite, forno dos meus desejos,
pois não tiveste medo,
e não me abandonaste quando os outros o fizeram

Beija-te na testa e, como cuidador da meia-noite,
faz com que a lanterna percorra o rosto atónito das cousas
para descobrir nelas as pegadas da tua presença,
caro amigo que te entregas ao mar.


A ÁRVORE DE CAUCHO

As formigas que conhecem bem a sombra
não têm motivos para se envergonharem,
não há lugar que não conheçam
nem alegria que não as encha nas manhãs frescas da costa.

As mangas que repousam nos vieiros percorridos
pela sua impudícia
são hoje ruínas de castelos, afastados bastiões para esquecer
e não se lançar a conquistar.
Os cruzados jamais viriam a esta terra, os corcéis
não assobiaram nela sob longas melodias.
São as suas rotas povoados concertos que cantam a espessura,
tempo silente que não diz vaguidades ou intensifica
os acentos que moram sobre as suas cabeças

Deuses que atravessaram o oceano moram nesta terra
desde há vários séculos
e os que habitam baixo a árvore não ficam a saber
ou se um dia souberam não se importam.

Não há baixo a árvore do caucho preces, não há consolação
tudo é vida de esplendor para o esquecimento.

E as folhas mexem-se, o tempo é eterno nas beiras,
o cães perseguem-se desde sempre entre a areia,
festejam os ou louros e os papagaios no céu magro
que abraça a árvore,
o dia decorre com fogos remotos e a pedra canta para si.

© Texto: Juan Felipe Robledo
© Tradução para Galego Internacional: Xavier Frias-Conde

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

SER, DE GLORIA YOUNG



I

Estas dobras da vida
penduradas dos ossos
esta cintura ainda visível
onde te agarras
por vezes
estas coxas anchas rejas
por que trotam os teus espaços
esta anca ocada
estojo para as tuas mãos
estas pernas que te asfixiam
com um nó de veludo
da escura gorja
até o lume
-tenro 
mastro
que transtorna os sentidos-
estes pés que 'te caminham
estas mãos que 'te furgam
esta mulher que te ama,
aqui
no quarto imperfeito.

II

A lua é o dia incendiado sob a árvore.

A água queima a minha gorja
só uma palavra fresca
alaga o meu corpo e a minha alma.

É a palavra que juntou os nossos passos
em qualquer recanto
e tropeçou entre as sombras
e paralelepípedos
e topou o caminho do mar
perdido.

É a palavra amarrada
à morte dos relógios
e à chuva do domingo azul
com a sua escuma
que lava o meu ventre de pó.

É a palavra que cruzou a rua e entrou no hotel
para o quarto
e se deitou na cama.

III

Sou o recinto
de todas as palavras penduradas no vento
da luz que atravessa a minha curva cordilheira
da cantiga do sono
do mar com as suas escumas
da alma desbocada ao fio de uma estrela

Sou a voz
que não se esconde
que explora os seus tecidos
que uiva no mistério de todos os silêncios
que murmura à vida
que espreita na vigília
que bota o riso a voar vencendo a saudade.

Sou a água
da chuva
do mar
da trovoada
e procuro tesoros
e lavo
as lembranças

Sou a mulher
deste século
a escalar esperanças
a cavalgar corcéis
de amor e tenrura
a abrir os meus poros
ao cheiro das frutas
a ceivar o cabelo
a sulcar a doçura
aqui
na penumbra
do
pôr-de-sol

© Texto: Gloria Young
© Tradução para Galego Internacional: Xavier Frias-Conde

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

CANÇÃO 20, PABLO NERUDA


Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Escrever, por exemplo: "A noite está estrelada
e tremelicam azuis os astros ao longe".
O vento da noite vira no céu e canta.
Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Eu amei-a, por vezes ela também me amou.
Nas noites como esta tive-a nos meus braços.
Beijei-a tantas vezes sob o céu infindo.
Ela amou-me, por vezes eu também a amava.
Como não ter amado os seus olhos grandes fixos.
Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Pensar que não a tenho. Sentir que a perdi.
Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela.
E o verso cai na alma como no pasto a orvalhada.
O que importa que o meu amor não pudesse guardá-la.
A noite está estrelada e ela não está comigo.
Isso é tudo. Ao longe alguém canta. Ao longe.
Minha alma não se contenta com tê-la perdido.
Como para achegá-la o meu olhar procura-a.
O meu coração procura-a, mas ela não está comigo.
A mesma noite que branqueja as mesmas árvores.
Nós, os de então, já não somos os mesmos.
Já não a quero, é verdade, mas quanto a amei.
A minha voz procura o vento para tocar o seu ouvido.
A sua voz, o seu corpo nídio. Os seus olhos infindos.
É tão curto o amor e é tão longo o esquecimento.
Porque em noites como esta a tive entre os meus braços,
a minha alma não se contenta com a ter perdido.
Embora esta seja a derradeira dor que ela me causa
e estes sejam os derradeiros versos que eu lhe escrevo.

© Texto: Pablo Neruda
© Tradução: Xavier Frias Conde

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

FRAGILIDADES, DE GENOVEVA PONCE

Noites

Na noite aberta,
agarimoso e, por uma vez,
a toda a voz se estende
o canto dum desvario.

Sabedoria de esquecimentos e lembranças,
almofadas para arrolar
aqueles poemas anônimos.

Sem rotas

Ostentar o teu nome
em todas as esferas
embora não possa reclamar-te,
embora, como qualquer tarde,
as tuas rotas fiquem cobertas de areia,
pois não voltará a tua palavra milagre
e irão embora com o vento teus segredos

Cumplicidade

A este sonho falta-lhe cumplicidade
feitura perfeita,
asas dispostas.

Ainda lhe pesam medos
sombras de outrem
e mais alguma quimera.

A este sonho falta-lhe cumplicidade
sentido infinito
sentirmo-lo de nosso
como se fosse um filho
como se fosse possível.

Perpetua-te

Perpetua-te em mim
como calendário eterno,
como mundo,
como universo,
como vida e como morte


© Texto: Genoveva Ponce
© Tradução: Xavier Frias-Conde

segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

UNI-VERSOS, DE CAROLINA MUÑOZ SUANCHA

Beijara-o tanto
que mesmo por lá lhe saíram as entranhas todas.
Deitada no pó da dor
pregou para o desejo enxugar.

Acabou de chorar
e arrancou uma após outra as pestanas
fez um longo fio
e coseu os lábios.

Diz-se que nunca mais
suplicou por amor

* * *

E uma cousa leva a outra...
Ele é de vidro,
ainda nem se sabe amado,
leu todos os gestos rítmicos,
fala do cortejo astral,
treme de estupor e
presente o seu final
Fragmentado no chão,
jaz feliz, agora ele é só desejo
e lembra.

* * *

Porquê é que assim dançavas não sei.
És o boceto dos meus afetos.
Apareces
e todos os meus versos são consoantes.
Mexes-te e a cultura perpetua-se.
Fazes amor com a reminiscência que sou.
Acordas
e voltas a ser un cadáver que à noite traz
o meu antídoto contra o esquecimento.

© Texto: Carolina Muñoz Suancha
© Tradução: Xavier Frias-Conde

sábado, 6 de janeiro de 2018

HAIKUS, DE FÁTI ZAH



Luz desta noite
a custodiar a terra
a lua cheia


Un raio de sol
entra pelo ferrolho
também a sombra


A chuva molha
o banco solitário
e a lembrança


Pingas de chuva
embafam os vidros
e a memória


Cheiro perpétuo
as castanhas assadas
gozo de infância



© Textos: Fáti Zah
© Tradução: Xavier Frias-Conde

sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

PRIMEIRA NOTA DE VEGA E OUTROS POEMAS DE JAIME LORENTE

primeira nota de vega

olhamo-nos nos olhos:
apenas nos rodeia
o silêncio do que nascerão as palavras

ainda é cedo para serem pronunciadas
mas ela sabe quem sou

respira devagar
ainda o mundo não lhe ensinou
como acelerar os relógios;
a vida adormece nos seus olhos lentamente
com a minha mão amarrada

naquele momento cúmplice, íntimo, secreto
naquele vínculo vivo e nascente
germola a poesia


determinação

entre maços de papel com poemas tristes
sou um homem feliz
eternamente grato

entre maços de papel com poemas tristes
está a vida convosco

ante uma realidade distópica, desafiante,
refugio-me na poesia crítica
-sem largar a vossa mão-
então
volto ao lar

entre maços de papel com poemas tristes
fica o amor;

sumo
para vos alcançar a cada instante
e dedicar o meu tempo
a caminhar convosco
no coração puro,
neutro e singelo
da vida


entre reixas

por vezes saímos da prisão da nossa mente
e nunca encontramos
países, fronteiras ou ideologias:
apenas pessoas,
montanhas, peixes, mares e rios

compreendemos
que somos livres rodeados de aramados
a respirarmos o ar viciado
que nos mata lentamente

descobrimos
que uma parte de nós
saiu e conheceu a verdade

e muitos
por medo de afrontarem o mundo
e lutar contra as injustiças,
vestem de novo
a sua roupagem riscada
e
retornam
obedientes
à cadeia


© Texto: Jaime Lorente, 2018
© Tradução: Xavier Frias-Conde

quarta-feira, 17 de maio de 2017

SÚPLICA E OUTROS POEMAS DE GABRIEL CISNEROS

SÚPLICA

Senhora, escuta a oração
de quem perdeu
a origem e o firmamento,
não hesites mais

Ergue-te dentre os mortos!

Sangue que alça
calendários
na necrópole
onde dorme
a titereira
do meu espaço sem destino,
sereia do mar Egeu,
apocalipse
abismo das fendas.

Penélope,
dói-me o esperma
encadeado às formas
das tuas costas
não sei quantas batalhas
tenho perdido
perante donzelas
que se vestiram
graças às tuas galas,
nem as vezes que gritei
no abismo dos escaravelhos
para saíres dentre os mortos
e dançares sobre a lua
antes de desmembrares as minhas partes.

Senhora, escuta a oração
de quem perdeu
a origem e o firmamento,
não hesites mais.

Ergue-te dentre os mortos!


AO AMOR SEM ESPERANÇA 

Não é esse amor que guardam numa caixa
para ser vendido como uma bagatela
a corpos cansados
que nas endorfinas
tentam esquecer o tédio,
nem o que se consuma
como a proa de um veleiro afundido
no oceano de serpes
que perderam o rasto por trás da neblina do porto

Este amor é como uma viagem
à lua, ao tempo, à terra em cento e oitenta sinais,
ao enxofre que negamos
na fórmula dos alquimistas,
na escuridão onde o corpo
tremeu pela primeira vez
e permitiu que os continentes naufragassem.

Não te minto,
nesta impossibilidade de te tocar vendi a alma
a um exército invencível de mulheres
com que não consigo desvelar a adivinha
com que os teus olhos crucificaram
o meu respirar das tuas perfeitas nádegas,
do teu sexo onde não consegui plantar o cedro
que me aconchegue na morte.

Neste amor que me faz escrever
com a vaga esperança
que alguém herde o teu sangue,
chore no futuro ao lado de um violino carcomido
com os meus versos
e assim, sem vontade, tu me ames
e no êxodo as palavras quebrem paredes
e possa tocar-te,
como a aura à primeira pétala
ou o sol no rosto escuro
de um elétrico que nunca caminhou na luz.

É este amor que continua a te nomear
com a raiva
de quem lança a primeira pedra
porque se cansou de ocultar os seus pecados.


O CAFÉ E O AMOR 

Bebíamos café
a empurrarmos o ocaso para a falésia,
sem nos atrever a olhar
para a areia compreendida numa bolha
que nos esvaecia.

Preto, quente, proibido
numa chávena a vida eterna resumida.

O desembarque e os exílios eram nada,
como bater os tacos
sobre o mar para que chova
e morrer afogados cara a cara
nas sementes que nunca floresceriam.

Premonição
da dor sobre as almas,
sorvo-te ainda no café
e embora estejas feliz trás
a inocência da tua gaiola.
por vezes penso que te tenho
numa chávena.

© Texto: Gabriel Cisneros Abedrabbo, 2017
© Tradução: Xavier Frias-Conde

BORBORETAS E OUTROS POEMAS DE KIRA KARIAKIN

BORBORETAS

Não entendo o meu destino
vivo suspensa
na trama das borboretas

não desço para os dias futuros
não padeço dor
habito-o sem reservas
com o peito encerrado

não sou a mulher que quis ser
planificaca errada

não tenho arrependimentos
apenas tristezas íntimas
escondidas
que agasalham o quotidiano

não espero a ledice
persigo-a
conquisto-a em cada entardecer
em cada cintilar da noite

não durmo
a vigília é o paroxismo do sonho
da alma atenta
ao voo das borboretas

RITUAL

A água ferve
a chaleira assobia

decido

se for de manhã
o chá será forte

preto

se o crepúsculo
for promissório
a mistura será
afumada e oriental
do contrário
aromatizada à inglesa

as noites e a vigília
são acompanhadas
por perfumes de tangerina
cidreira
sabores de frutos outonais

a xícara acolhe o momento

o paladar   a língua    o olfato
convergem
na verdade do primeiro trago

o meu corpo recebe
comunhão


[TENHO UM OCO NO CORAÇÃO]

Tenho um oco no coração
é seco e escuro

se introduzir um dedo
sinto a aspereza
da areia oculta
das minhas securas
e a negrura densa
que aperta como uma jibóia
insone e insatisfeita

o meu coração
é torto de sentimentos

o vento nele não encontra ninho
nem a luz repouso

eu vivo com um oco cego
no peito

© Texto: Kiria Kariakin
© Tradução: Xavier Frias Conde