quinta-feira, 26 de março de 2020

TRÊS AVISOS DE GATO


(1)

Um som distante
Deixa a luz espalhar-se
como água no chão.
Ronrom sussurrante
que inspira e expira tempo.

Trigo fecha os olhos e diz-me
que sonhou borboletas
que sonhou colibris a entrar pela janela
e querendo escapar pela claraboia
que sonhou minhocas
que sonhou um enorme jardim
que sonhou carícias de madeira e tecido
que sonhou outros gatos, noutros tempos,
e não sabe se foram as suas sete vidas
que sonhou transeuntes que lhe falam pela janela
que sonhou que o seu rabo o embalava
que sonhou que mascava bolas de plástico,
brinquedos, pedaços de vida carregados de trabalho
que sonhou que dormia comigo
para acordar de novo
para me contar os seus sonhos


(2)

Gostas do cheiro dos meus passos
Quando a porta abre o barulho dos carros,
vens para concentrar o calor da tua cabeça
nos meus pés descalços
mordes nas minhas desventuras
limpas com a tua língua
o percurso que não deu frutos
pedaço de língua e cabelo


(3)

Debaixo da cama
entre o espaço das meias rasgadas
e as borlas do tapete de lã
escondes
bocadinhos de amaranto
folhas de hortelã-pimenta
uma ponta desgastada da minha blusa
e os teus passos agachados
para me acordares de manhã

© Texto: Luz Lepe Lira
© Tradução: Xavier Frias-Conde

sábado, 21 de março de 2020

NO MEIO DE UM RIO E OUTROS POEMAS

NO MEIO DE UM RIO


Sentada no centro de um rio que escreve beleza,
entre os discos de meu pai procuro,
nas beiras dos seus livros os poemas da mocidade.

Mãe, coserei um vestido com as tuas tranças virgens:
mãe, deixa que luza nos meus calcanhares o teu sangue jovem.

A moda ri com melodias azedas. Sangra-nos a moda, tinge-nos de vermelho
as unhas, são todos os sapatos avermelhados.

Afundirei os tacos no fundo da agulha vermelha,
escreverei mensagens na beira da Constituição.

Com os meus cabelos de cobre molhado rirão os barcos,
eu própria rirei ao desfrutar dos poemas, ao cerzir a música
que alguém dantes bordara.


QUE NÃO ARREFEÇA O CAFÉ


Tens um medo ancestral a te queimares, medo
a seres mordida por algum cão na perna
o algum líquido preto na pele.

—Un caffè macchiato per la ragazza.

Ruge um cão pequeno e muito enrugado
escondido sob a pele que cobrira um cavalo.
E por enquanto, atrás, alén da barra do bar
agita, interpreta o italiano maturo
os entardeceres siena da áfrica negra
—coquetel de vida miserável e solidão—.

—Tens medo de seres mordido pela vida?
Morde a vida. Sabe que não dói sempre.
Não sangra sempre. Por vezes produz prazer.


AO NOSSO PASSO


Parte um Bart sem mim en Montgomery Street.
Já é noite
e uma rapariga vestida de preto deteve o passo.
Alguém soa o piano que deixaram cair
mesmo no meio da rua.

Soa a quatro mãos o Dies Irae do Réquiem
que um desconhecido sob uma capa escura
encarregara ao Mozart.
A derradeira vez que bateu na porta,
o homem de preto não era um homem.

Quem sabe que partes da sequência
não foram apagadas pelos seus discípulos.

O perfume da incerteza
desenha as notas da minha elegia.
Enfio-a como as bágoas sólidas
ao meu colar de agoiros.

E reescrevo-a
na saia
de pé
no derradeiro vagão do serão.

© Texto: Elia Saneleuterio Temporal
© Tradução: Xavier Frias-Conde

sexta-feira, 20 de março de 2020

À SOMBRA DO CAYAMBE



GAIOLA

que necidade a dos meus ossos,
querer construir uma gaiola
para o calor dos teus dedos,

que necidade a tua

de coser as minhas costelas
com os teus dedos,

dói muito,
senti-los desesperados
com o desejo como médula,

esta magreza tem nome
e tem fame (...)



2015 - "poemas después de Laclau"

CELHAS POVOADAS


... enquanto dormias hoje de manhã
precisei contar algo de ti
e descrever algo tão de teu e tão natural,
mas precisava contar algo que me supusesse um desafio,
as tuas celhas!
sim, as tuas celhas pretas, povoadas, desarrumadas
e visei contar cada febrinha das tuas celhas
e dei ouvidos ao mito do conjunto infinito
e com paciência para -turno médico-
comecei pela celha direita,
já contara onze febrinhas,
cheguei a dezaoito,
cheguei a vinte
e quando estava para chegar a vinte e seis
o miado agudo do gato (sinónimo de fame)
despertou-te...
e descobriste-me tão pertinho de ti,
beijaste-me na vint...
e nessa manhã foi impossível voltar
a contá-las...



2016 -  "poemas después de Laclau" 2015




AOS 33


Sempre foi assim,
à sombra das árvores
eram o seu abeiro,
o seu lar,
onde caminhar descalça
era permitido,
onde o sol
era evaporador de bágoas,
onde o vento
era parceiro de jogos,
onde a água
era espelho,
onde perguntar
era essencial,
onde o silêncio
era a resposta.

E é tudo quanto possui (...)

© Texto: Nataly Lalangui
© Tradução para português da Galiza: Xavier Frias-Conde