segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

TRÊS POEMAS DE PAÚL PUMA

ELOY ALFARO HÍPER STAR (2001) [fragmento]


big

bang

no início deus criou a amargura

a terra estava desarrumada e vazia
as trevas flutuavam sobre o perfil do abismo
o espírito de algo remexia sobre a face de uma bágoa

e deus extraiu da bágoa
e deus extraiu da bágoa
o céu e a terra

que tiveram amor e se regaram
no firmamento como astros

the heaven strong[2]

depois disse deus
façamos o homem à nossa imagem e semelhança
desesperado
para não se sentir sozinho

no vazio
que avançava aproveitando-se
da beleza
do horror

e fez a noite e o dia

plaf
grr r oh
grr r oh
gr h
plaf

e disse deus seja a luz
e foi a escuridão...




FELIPE GUAMÁN POMA DE AYALA (2002) [fragmento]


Oh, Wamán, meu avô:

Pereça o momento em que fomos partidos.

Pereça essa impenetrável árvore da carne.

Pereça o dia em que tu nasceste e eu morri.

Seja sombria a pirâmide em que havemos de chorar:

ramal bordado com nuvens de sangue:

traços em nós que voltam para a madeixa da recordação.

Soma da solidão na penumbra do buraco negro
que finge ser uma pinta no teu corpo tão antigo,
mais do que os olhos ocultos do Sacsahamán
ou a cabeça do nosso império
no centro da perfeição da afonia,
nessa cidade de amautas e aravicos e quipucamaios
e tecedores de ponchos com mais de sete mortes
que se rebelam contra si
para recordar que ainda estão vivos.

Ego da melancolia

Invenção da tristeza.

Perda.

Noite hasteada de libélulas atrozes.




GUAYASAMÍN (2010) [fragmento]


Oswaldo:

No início
o teu A era mais do que uma ave invisível
a proteger a cria da tua vontade impalpável
do Acaso.

Tudo era Caos e Silêncio.

Muito Silêncio.

Depois o teu B quis ser uma pequena povoação originária,
uma semente,
um ponto.

Na altura apareceu o teu C com o caminho num percurso da terra
que as letras anteriores tinham de seguir.

Forjaste as tuas elípticas com as tuas próprias mãos,
com o leite derramado por tua mãe entre os teus lábios e teus dedos.

E acordaste fechado num D de lodo e frutas silvestres.

O teu E
não pôde mais do que se tornar um edifício muito alto,
do qual se podia ver o futuro,
a poética da profética.

Dali o teu F tentou voar como sucessão de pontos até a linha
para emitir sons desde a garganta do G.

E o teu G subido com as outras letras
nas torres do H do homem recém instaurado na desolação
produziu um triste grunhido,
monocórdio,
alçado até aos mais escuros cimos
da intuição
da linha e da curva.

Então apareceu o teu I com a sua auréola enciclopédica, a sua Ordem.

E o J do teu conhecimento líquido
macerou-se nos abismos da tua inteligência
como um vinho de milho mastigado pelos teus irmãos
e fermentado para se tornar a bebida dos deuses,
elixir do perdurável amor pelo Universo...

© Texto: Paúl Puma
© Tradução: Xavier Frias Conde




[1] Sed y hambre, cántico de ángeles rebeldes, lupanar de la insurrección. A propósito de pecíolos inconclusos, soliloquio hedónico.
[2] Sede e fome, cântico de anjos rebeldes, lupanar da insurreição. A propósito de pecíolos inconclusos, solilóquio hedónico.

sábado, 13 de fevereiro de 2016

DEPOIS DA CAÇA (EXCERTO) DE XAVIER OQUENDO


Meu avô e minha avó
tinham um caminhar maturo.
Ela, lenta no galope;
ele, acelerado e ágil.

Caminhavam a olhar a última traça
que deixara o animal do dia.
Ela seguia o passo do homem
como uma consequência natural.

O rio do meu avô
e da minha avó
não se parecem com o Guadalquivir
nem com o Guayas.
É-vos um rio de pedra que desce
sobre os carreiros
que faltam por conhecer
e penetrar.

A minha avó nada tem a ver
com a avó do Perencejo.
O Perencejo não tem esses carreiros
nem esse passo seguro e lento.
O avô do Fulano
não conhece o caminho que o meu avô guarda
no bolso:
carreiro extraviado
entre a menta e o “king” sem filtro
a que cheiravam as suas calças.

O meu avô parece-se com os astros.
A minha avó é um astro.
O meu avô parece-se com a minha avó
e ambos com as estrelas.

Não têm nada do Guayas nem do Guadalquivir.
Nem dos velhos Fulano e Perencejo.
Olhamos para eles
através das radiografias das suas pegadas.
Olhamos para os seus carreiros como esfinges
que herdamos para praticar a fé.
Não tem nada a ver com os meus sapatos tortos.

Caminharam os dous até ao vale da morte.
São um rio que esconde as águas
debaixo das pedras.


ANTES DA CAÇA
A meu pai

Quero encontrar o lugar
onde me situar.
Entro na vizinhança
de vozes que me dizem:
                              vai procurar longe
                                            nos cais das mágoas,
                              vai pôr-te na fila com os astros;
                                            deixa um bocadinho o poema,
                                            e reconhece os olmos.
                                            Acha que já incomodas
                                                           que em grande um se deforma
                                                                          e se consome.

Mamã já não prepara bem as ceias,
não há jantares até depois do dia.
Vai procurar o círculo vicioso
que possa tornar-te homem
na insónia dos dias.
                              Vai e não voltes
                                            até depois da caça.



A INVISÍVEL

Há alguém
noutra parte,
que olha para mim como para um espelho.
Que se põe a me remedar
no bordo.
Que se passeia por mim
como uma epidemia.
Segue-me até aos beiços,
aos narizes,
às mágoas.
Há alguém que quer apaixonar-se por mim
como se eu fosse um ator de cinema,
como se não houvesse mais domingos
para o parque,
como se o juízo final
tivesse uma sentença.
Há alguém que caminha pelas ruas,
mas no passeio da frente
há muito trânsito
e perdo-a.


© Texto: Xavier Oquendo Troncoso
© Tradução: Xavier Frias Conde