sábado, 21 de março de 2020

NO MEIO DE UM RIO E OUTROS POEMAS

NO MEIO DE UM RIO


Sentada no centro de um rio que escreve beleza,
entre os discos de meu pai procuro,
nas beiras dos seus livros os poemas da mocidade.

Mãe, coserei um vestido com as tuas tranças virgens:
mãe, deixa que luza nos meus calcanhares o teu sangue jovem.

A moda ri com melodias azedas. Sangra-nos a moda, tinge-nos de vermelho
as unhas, são todos os sapatos avermelhados.

Afundirei os tacos no fundo da agulha vermelha,
escreverei mensagens na beira da Constituição.

Com os meus cabelos de cobre molhado rirão os barcos,
eu própria rirei ao desfrutar dos poemas, ao cerzir a música
que alguém dantes bordara.


QUE NÃO ARREFEÇA O CAFÉ


Tens um medo ancestral a te queimares, medo
a seres mordida por algum cão na perna
o algum líquido preto na pele.

—Un caffè macchiato per la ragazza.

Ruge um cão pequeno e muito enrugado
escondido sob a pele que cobrira um cavalo.
E por enquanto, atrás, alén da barra do bar
agita, interpreta o italiano maturo
os entardeceres siena da áfrica negra
—coquetel de vida miserável e solidão—.

—Tens medo de seres mordido pela vida?
Morde a vida. Sabe que não dói sempre.
Não sangra sempre. Por vezes produz prazer.


AO NOSSO PASSO


Parte um Bart sem mim en Montgomery Street.
Já é noite
e uma rapariga vestida de preto deteve o passo.
Alguém soa o piano que deixaram cair
mesmo no meio da rua.

Soa a quatro mãos o Dies Irae do Réquiem
que um desconhecido sob uma capa escura
encarregara ao Mozart.
A derradeira vez que bateu na porta,
o homem de preto não era um homem.

Quem sabe que partes da sequência
não foram apagadas pelos seus discípulos.

O perfume da incerteza
desenha as notas da minha elegia.
Enfio-a como as bágoas sólidas
ao meu colar de agoiros.

E reescrevo-a
na saia
de pé
no derradeiro vagão do serão.

© Texto: Elia Saneleuterio Temporal
© Tradução: Xavier Frias-Conde

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